
TRILHAR
O nosso território vive em cada cutiense, para os nossos as distâncias são parte da vida. Nos relatos de nossos pais e avós são frequentes as histórias de suas mocidades, quando, à procura de serviço nas comunidades vizinhas, dos parentes de outros quilombos que saiam a pé mundo a fora. Viajavam até semanas para alcançarem destinos incertos dentro desse sertão antigo e misterioso.
Quem corre cansa, mas quem caminha alcança. O conhecimento das coisas é a gente que faz. Andar é necessário, e andando é que se faz conhecer.
Na tradição dos antigos as mulheres costumavam ficar em casa, cuidando da família, enquanto o homem sempre saía em busca de recurso. Histórias são muitas de pessoas que deixam o lar para voltarem somente dali a alguns meses, ou até semestres. Esperavam o marido, o filho ou o pai, que por fim, auxiliado pela bondade dos homens e de tantos pelo caminho, sempre retornam são e salvos. O peregrino ao seu lar retorna.
Ainda hoje, agora com mais estradas e cada vez mais pessoas com carros nas comunidades, todos os kalungas podem sair para trabalhar em cidades e até mesmo na capital. Mulheres e homens, filhos e filhas são sempre criados na arte sazonal de saírem e voltarem de suas casas periodicamente, por longas investidas, para buscar trabalho fora.
E se por um lado cultura das andanças trouxe histórias duras, por outro, ela deu ao nosso povo a sabedoria dos silêncios, a generosidade dos forasteiros e a capacidade inabalável de confiar que devagar-e-sempre é possível ir a qualquer lugar. Em um mundo de viajantes todos somos também anfitriões, pois este que hoje viaja e recebe um abrigo de um estranho também amanhã pode se tornar abrigador e receber o forasteiro, que pela sua porta passa.
É quase impossível, que qualquer um passando pela porta de uma casa cutiense não receba antes oferta de almoço, água, pouso e ou companhia. E em todo o mundo nada pode ser mais divino que isso.
Conhecendo trilhas e conexões capazes de ligar serras e vales inimagináveis.

A NOTÍCIA
Quem passa vindo de longe traz notícias de onde vem e leva notícias para onde vai. Anunciando o nascimento deste, a morte daquele, narrando as histórias, trazendo notícias de quem anda sumido e levando o recado para quem sempre espera.
A notícia é como a poesia, a fofoca-informação é mecanismo de sobrevivência. É através das notícias que a gente sabe quando alguém vai partir, quando outro vai chegar, quando alguém vai parir ou que alguém amanhã vai para a cidade e pode levar esta ou aquela encomenda. Assim nasce o grupo o qual os cutienses alimentaram durante o tempo com notícias de lá e de cá.
Em um mundo frenético como o das grandes cidades, a Cutia é paz e encontro para o seus. E junto com ela uma imensa sabedoria a respeito das “jornadas” e do “silêncio”.
Fiando vagarosamente nas teias das notícias a conexão das estações e dos segredos do tempo.
